terça-feira, 8 de maio de 2012

Um teste de avaliação


Cartaxo, 23 de fevereiro de 2008 - um teste de avaliação. Tenho de fazer mais um teste de avaliação, um daqueles instrumentos que convocam os alunos para o encontro consigo, com o seu saber, ou até com o saber do seu não saber, ligeira e fugazmente enevoado por uma tristeza interrompida pelo toque da campaínha e (Ah, como eu sei!) recuperado, num olhar apreensivo, medroso e demorado até pousar nos números que esclarecem o peso da palavra classificação.

Nos dias de teste, é como se tivesse outra turma. Silenciosos, de um silência ativo, deixam-me tempo para os observar: a mancha cromática das roupas que elegem para afirmar a sua individualidade, a postura física do seu discurso ora direto, ora indireto com o enunciado, a expressão facial, a tendência, às vezes ainda indomada, para me perguntarem aquilo que não querem perder tempo a compreender. E eu forçada ao silêncio. Não me é fácil! Esgueiro-me, então, num ápice, para um tempo fora do tempo, nessa inefável máquina que é a memória; é tão fácil e voraz que o tempo se dilui, enquanto me revisito, de bata branca, numa corrida para casa, exibindo, discretamente (se tal advérbio de modo se coadunasse com tal verbo...), o laço de seda azul, ou rosa que atestavam a minha excelência, respetivamente, em Aritmética e Ditado!

Um teste de avaliação. Tenho de fazer um teste de avaliação. Dispo a bata branca com cuidado, não vá o laço cair. Não o mostro já hoje à minha avó. Nem posso contá-lo hoje às mãos habilidosas e magistrais da minha tia, essas mãos que me entrançavamm o cabelo e tricotavam camisolas que hoje me aquecem a alma e antes, pensava eu, só me aqueciam o corpo. Hoje, o meu ofício é, indubitavelmente diferente. Eu sou diferente. Todos somos ininterruptamente diferentes e iguais. Às vezes penso que somos inexoravelmente mais iguais, por nos querermos tão diferentes. Agora, eu não uso bata branca, nem tranças, nem laços que não sejam os dos afetos. Mas ainda corro por entre o laranjal da minha avó e assisto, maravilhada, ao voo rasante das libelinhas coloridas, sobre a água do pequeno tanque que, então, me parecia enorme. Tão enorme que nele cabiam todas as brincadeiras de verão.

Perscrutando bem o passado-presente, quem sabe eu não me veria já partícula intrínseca do ofício em que, paulatinamente, me digo, tenho de fazer um teste de avaliação?!

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Aldeia global

Que bonita a aldeia global!
Que eficácia e que vertigem!
Que partilha na aldeia global!
Na aldeia global as pessoas vivem depressa.
Todos têm muita pressa
na aldeia global, só há primeiros lugares!


Na aldeia global morre-se depressa.
Ama-se depressa.
Mata-se depressa.
Mutila-se.
Explora-se
Viola-se.
Tudo depressa.


Na aldeia global, tudo acontece depressa.
Por isso comemos antisseticamente,
enquanto as torres gémeas se desmoronam,
enquanto vemos as próteses generosamente
oferecidas aos meninos de Angola.
Porque as suas pernas e braços
se estilhaçaram. Depressa.
Depressa, multidões apodrecem em valas comuns.
Tão comumente!...

Que pena as multidões só assim conquistarem a equidade!
Morrem e apodrecem nos mapas,
nos gráficos, nos ecrãs.
Não nos dizem respeito.
São apenas pessoas que passam.Depressa.
Quem as mandou exibirem-se, assim, tão descompostas?!
Degoladas. Ensanguentadas. Cobertas de moscas, de pó,
no ecrã que é nosso?!

As guerras e catástrofes naturais deverão ter
maquilhadores de serviço
para não ferirem a nossa suscetibilidade,
para não irromperem, assim, pelas nossas casas,
enquanto, antisseticamente,
concluímos uma sobremesa light
num condomínio fechado da aldeia global!

A Terra e a Lua

Retalho de memórias

- O que é o mundo? De onde virá tudo isto? “Tudo isto” era a então enorme vinha dos pais, onde, cesto de verga a seu lado, escolhia as parras e ervas mais adequadas à alimentação dos coelhos que haviam de ser refeição melhorada num “dia nomeado”. Com algum autocontrolo advindo de uma possível consciência da realidade que pesava sobre a dura existência dos seus, executava a tarefa e interrompia para perscrutar a magnificência do céu e os seus insondáveis enigmas que, a um só tempo, a fascinavam e assustavam, como se a procura do entendimento lhe tirasse a realidade debaixo dos pés e a privasse de respiração. Assim também quando admirava o verde único da terra após as chuvas, os seixos redondos e branquinhos na vala ladeada de gamboeiras que rescendiam e que, por vezes, quando não trabalhava, porque o tempo não permitia, a mãe aproveitava para fazer marmelada e geleia. Gostava de andar na horta. Gostava de regar, de acompanhar o crescimento das árvores e as suas metamorfoses. Gostava do cheiro da terra e adorava o Inverno. Quando chovia, muitos patrões acabavam por mandar para casa os trabalhadores. Então, a mãe regressava com as demais trabalhadoras, cabisbaixa, sem aquela repetida alegria canora e galhofeira que a alimentava bem melhor do que o magro almoço que levava no cabaz de palha entrelaçada, imaculado, singelo, digno e honrado. Dias de chuva eram dias sem salário; era por isso que a mãe ficava otimista sempre que chovia toda a noite – amanhã vai estar bom tempo; Deus queira que a terra não esteja encharcada - dizia expetante. Por causa da chuva, a menina tinha, no inverno, por um ou dois dias, a mãe em casa. Como ela gostava do inverno! Claro que ela tinha sempre muito que fazer: em casa, na horta, mas também nos trabalhos de costura. A mãe adorava costurar e a menina adorava ficar ali, no quarto dela, em frente à janela onde tinha a máquina de costura comprada em segunda mão e que ainda hoje é a mesma, aquela em que fez lençóis, aventais, saias e tanta, tanta outra coisa sempre “nos bocadinhos vagos”, como costumava dizer. Quando a menina era muito pequena e, para que a mãe pudesse trabalhar e sair de casa às sete da manhã depois de ter “tratado da criação”, deixado feijão cozido para a sopa que havia de ser o jantar e lavado ou deixado a corar a roupa do dia anterior, deixava-a ficar toda a semana em casa da avó ou em casa da tia Deolinda, num lugar onde o ruído, inicialmente estranho dos comboios passou a ser música de embalar e de sonhar. Assim foi até entrar na escola. Cedo compreendeu que a mãe era um filão inesgotável de energia e essa observação ainda hoje a faz relativizar o seu próprio cansaço. O pai tinha um emprego melhor. Todos os dias apanhava religiosamente o comboio das seis da manhã, muito bem vestido, e regressava ao final do dia. Nos tempos livres, cuidava da terra, construía capoeiras, bancos,… Fez até um carrinho para a irmã empurrar e começar a andar; uma versão mais saudável dos atuais andarilhos. Era um pai doce sem mais que o beijo da partida e da chegada. Pouco ou nada ambicioso, ao contrário da mãe que, sem ser por inveja ou revolta, queria ter mais, ter uma casa melhor, dar um bom enxoval às filhas, trazê-las bem vestidas, tudo, naturalmente, dentro do que o seu conceito de “bom” e de “possível” abarcava. Só estudar demais lhe pareceu inadequado e esse limite foi a conclusão do 3º ano. A professora dela bem que a tentou convencer a continuar a estudar, falou até com o pai, comprometeu-se a ajudar nos estudos, mas ela foi inabalável: - Deus me livre ir estudar e as minhas irmãs a trabalhar! Não, eu também quero trabalhar e ajudar! - e assim foi até hoje: trabalhar, ajudar, reclamar, mas também brincar, cobrar, desculpar, repetir-se numa litania sem fim, superar-se, dar-se, inquietar-se, impacientar-se, recomeçar. Reclamar a atenção e o afeto do marido, esperar o milagre da sua transformação a vir ao encontro das suas expetativas de sempre e para sempre. E a filha, já mulher, a achar absurdo e a cometer o mesmo absurdo. Como quem espera que uma fonte, porque tem essa designação, há-de dar água. E o pai no seu silêncio, na sua aparente apatia, mas naturalmente bom aos olhos da filha, um pai querido, fácil, mas distraído de muita coisa da vida, talvez porque havia a” cegarrega”, como sempre chamou à mulher. Cegarrega, mas também Xanita, talvez as palavras mais simpáticas e generosas que usou publicamente para fazer jus à sua tenacidade, à sua força e ao seu riso fácil. Hoje, curvados pelo peso da gravidade somado ao peso dos trabalhos, preocupações e privações, misturam o balanço da vida passada com projetos de futuro, estremecidos pela cada vez mais forte aragem ditada pelo medo do amanhã. Nos sulcos das mãos e rosto de cada um, a menina mulher encontra o vital aconchego que sempre lhe fez e fará bem enquanto a sua própria postura se vai inclinando para o chão, a evidenciar o legado dos genes, como um girassol em fim de tarde, a alma em posição fetal a defender-se da mesma aragem de medo. Ana Maria Blazer, janeiro de 2011